segunda-feira, 21 de junho de 2010

LENDAS AMAPAENSES

LENDA DO TAMBOR

O tambor ressoava à noite e era ouvido pelos pacatos moradores da Vila do Curiaú. A mensagem trazida pelo batuque era ininteligível para os negros, na maioria descendentes de africanos, mas que há muito esqueceram o dialeto tamborístico de seus locais de origem.
O mesmo não acontecia com preto Tucuim, 101 anos nas costas, pele enrugada, mas corpo firme, uma espécie de líder na comunidade, que silenciava quando ouvia o ribombar dos tambores, como se ali estivesse sendo passada uma mensagem funesta de seus ancestrais. De onde vinha o som não era sabido. De algum ponto da floresta, talvez.
De início, sem compreender a mensagem, Tucuim mandou dez de seus negros à procura do interlocutor, mas por mais que estes se embrenhassem na mata o som parecia vir de cada vez mais longe, bem difícil de braços humanos conseguirem batucar com tamanha violência, e assim fazer a mensagem chegar à aldeia.
Sempre à noite, Tucuim metia-se em sua barraca de palha e ficava atento. O som lhe vinha os ouvidos. Até que uma noite o rosto negro empalideceu e muitas rugas vieram se unir à primeira, demonstrando preocupação e terror. Tucuim entendia. Uma providência urgente precisaria ser tomada, Agora, todas as noites, o batuque não era mais de tambor. Para Tucuim, era uma voz que previa desgraça e mortes na pequena aldeia, caso suas determinações não fossem cumpridas. Por dias Tucuim manteve-se pensativo, preocupado. Finalmente o negro levantou-se da rede, puxou uma longa baforada no cachimbo e reuniu a tribo. Airá, seu filho, foi ter com ele, para saber o porquê da ordem de sacrificar um boi para ser queimado em holocausto sem que os membros da aldeia, que vinham sofrendo fome, pudessem usufruir da carne. Tucuim pronunciou poucas palavras, mas que aterrorizaram o jovem.
- Meu filho, antes um boi com seu sangue e cabeça, que a morte do povo, mulheres e crianças. Seja feita a minha vontade e da deusa Taimã!
Tucuim sabia. Sabia e estava preocupado, profundamente preocupado. À noite todo o povo se pintou com sumo de tucumã e bacaba. Uma das três vacas que proviam de leite a aldeia foi colocada em um altar feito com grossas toras de árvores. Antes que o sacrifício fosse feito, ouviu-se a voz de Tucuim, profundamente amargurada.
- Meus irmãos, meus filhos, uma grande desgraça veio se abater sobre nós. Eis que nosso povo esqueceu seus costumes e já não venera seus deuses. No tambor, que quase todos ouvem na mudança da lua, a deusa Taimã, que muito ajudou nossos ancestrais, diz: “Ó povo de Curiaú. Ó desgraçados, vocês esqueceram de suas origens e agora adoram outros deuses. Eis que minha ira cairá sobre vós. Na primeira lua cheia a aldeia será banhada em sangue. Serão muitos os mortos e nesse dia as mães chorarão seus filhos. Mas, ah, povo desgraçado, ainda há uma chance de evitar esse mal. Um dia antes da lua cheia, todos os primogênitos deverão ser levados para o centro da floresta e deixados sem pão e água. Eu os trarei para meu reino e minha ira será aplacada.
Tucuim continuou:
- Meus irmãos, o boi que será apresentado em holocausto vai junto com muitas orações minhas, na tentativa de aplacar a sede de deusa Taimã. Todos devem dançar e orar esta noite, pedindo misericórdia, para que muitos dos nossos não sejam sacrificados.
E durante toda a noite os tambores voltaram a falar. Tucuim se desesperou. Que seria da aldeia sem as crianças? Sem continuidade de espécie em breve não existiria mais o Curiaú. A vingança da deusa seria tremenda.
Durante toda a noite Tucuim meditou e pela manhã anunciou ao povo que iria à floresta e se apresentaria como sacrifício. Naquele dia todos choraram por seu destino. Tucuim não levou nem pão nem água, mas somente a bolsa com fumo para esperar a morte certa. Seguiu para a floresta, onde permaneceria por três dias. No segundo dia acendeu uma fogueira para se aquecer e viu que do fogo saía uma fumaça negra, de incenso e enxofre. A deusa personificou-se diante de seus olhos. Majestosamente dirigiu-se ao negro:
- Tucuim, meu servo fiel desde o início dos tempos, como foram seus ancestrais. Por que te sacrificas por um povo que não merece?
- Minha deusa, não posso deixar as crianças perecerem. Leva meu corpo e assim aplacarás tua ira, mas deixa meu povo em paz.
- Volta para tua aldeia, Tucuim. Teu povo está salvo. Neste momento todos clamam por perdão. Com tua sabedoria conseguistes converte-los novamente a mim. Vá em paz. De hoje em diante não haverá mais fome. E que ninguém esqueça das minhas palavras.
E assim Curiaú foi salvo. Hoje, décadas depois, ainda não se ouviu o tambor da morte proclamando a ira da deusa negra, pois a história, passada de pai para filho, faz com que todos os descendente africanos ali existentes sigam fielmente os mandamentos e venerem seus deuses.

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